Brain Dump

sábado, 2 de janeiro de 2010

Newton e os universos paralelos

Neste último Natal fomos passar o feriado no sítio. Não precisei de muito tempo pra notar que eu não funciono muito bem nesse ambiente. Além de ser alérgico a quase todos os insetos, eu tinha apenas uma pequena noção de coisas básicas de quem vive por lá (como andar a cavalo, por exemplo). Isso nem me chateia, porque em compensação eu tenho outras habilidades que o pessoal do sítio não tem, como saber usar o Google Sky Map pra identificar as estrelas no céu.

Enquanto eu descansava numa rede, eu comecei a pensar como seria um universo paralelo onde o Ricbit é um matuto que entende tudo da vida no campo. Mas o pensamento não durou muito. Que coisa batida isso, se for pra imaginar um universo paralelo, vamos imaginar um mais original!

Sempre que pensamos em universo paralelos, tendemos a imaginar um muito semelhante ao nosso, onde apenas alguns detalhes mudam. E se imaginássemos um universo tão diferente que até as leis físicas são distintas da nossa? Por exemplo, como seriam as órbitas planetárias num universo onde a Lei da Gravidade não variasse com o quadrado da distância, mas sim com alguma outra expressão qualquer?



Esse exemplo é bacana por causa da sua importância histórica. Vamos voltar para o tempo do Isaac Newton, que o Asimov considerava o maior de todos os cientistas. É inegável que o Newton era um gênio, mas o que nem todo mundo sabe é que ele era briguento, vingativo, e costumava cometer o maior pecado que um cientista pode fazer: não citar as fontes.

Isso aconteceu com a Lei da Gravidade. Naquela época ainda não existiam as listas de discussão, então os cientistas conversavam por cartas escritas à mão. Certa vez, Newton recebeu uma carta do Robert Hooke, aquele que hoje é conhecido pela lei da molas. Nessa carta, Hooke dizia que suspeitava da existência de uma força da gravidade, que seria central (dependendo apenas da distância), e provavelmente proporcional ao inverso do quadrado da distância. Na carta ele ainda dizia que não sabia como provar essa suspeita.

Hoje em dia a razão para o Hooke não saber provar é clara. Pra conseguir provar, você precisa saber Cálculo, que o Newton já tinha inventado, mas ainda não tinha contado pra ninguém. Se o Newton fosse gente boa, ele teria respondido algo do tipo "eu sei provar, chega mais e vamos resolver juntos". Ao invés disso, ele ficou na miúda, e anos depois publicou o Principia Mathematica, onde ele usava o Cálculo para mostrar que a tal força central inversamente quadrática implica em órbitas que são seções cônicas.

O Hooke, compreensivelmente, ficou puto, e foi reclamar com o editor do livro, o Halley (o cientista, não o cometa). Depois de muito bate-boca, o Halley convenceu o Newton a colocar um prefácio onde ele dizia que a lei da gravidade tinha sido sugerida informalmente pelo Hooke, mas sem demonstração. Numa carta posterior ao Hooke, Newton ainda diria "se enxerguei mais longe, foi porque estava sobre o ombro de gigantes". Não era humildade, era trollagem. Conta-se que Hooke era baixinho e corcunda.

Mas o Newton não parou por aí. Certa vez, ele ficou como responsável pela mudança de prédio da Royal Society. Entre os quadros que precisavam ser mudados, estavam os retratos de todos os membros do grupo. Por uma coincidência não-explicada, o quadro do Hooke foi o único que se perdeu no caminho. Hoje em dia, ninguém sabe como era o rosto do Hooke, esse quadro perdido era o único retrato dele.



Nada disso teria acontecido se o Hooke soubesse Cálculo. E nós, para calcularmos nossas órbitas em universos paralelos, vamos fazer exatamente as contas que o Hooke desconhecia! Se você também não sabe cálculo, pule a caixa azul e vá direto pro resultado.

Consideremos um sistema com duas massas pontuais no vácuo. As contas em coordenadas cartesianas são meio chatas, então vamos usar coordenadas polares, centradas numa das massas. Nesse tipo de conta, o normal é usar um sistema de versores r e θ que giram junto com o planeta, mas a engenharia me deixou vícios difíceis de largar, então eu vou usar exponenciais complexas. A posição do planeta é a seguinte:

p=re^{j\theta}

Note que r e θ na verdade são r(t) e θ(t), eu vou omitir o tempo pra não poluir as equações. A aceleração da partícula é a segunda derivada:

p'=r'e^{ j\theta}+rj\theta'e^{j\theta}
p''=r''e^{j\theta} +r'j\theta'e^{j\theta}+r'j\theta'e^{j\theta}+rj \theta''e^{j\theta}+rj^{2}\theta'^{2} e^{j\theta}

Agrupando os termos e lembrando que j2 = -1, temos:

p''=(r''-r\theta'^{2})e^{j\theta}+(2r'\theta'+r\theta'')je^{j\theta}

Até aqui tudo genérico. Vamos impor agora que a força seja central. Nesse caso, a componente transversal vale zero. Note que, com uma pequena manipulação algébrica, dá pra isolar uma derivada:

2r'\theta'+r\theta''=\frac{1}{r}(2rr'\theta'+r^{2}\theta'')=\frac{1}{r}\frac{d}{dt}(r^{2}\theta')=0

Aqui temos duas soluções. A primeira é sem graça, 1/r=0 se as duas massas estiverem infinitamente distantes, aí naturalmente a força transversal é zero. O segundo caso é mais legal:

\frac{d}{dt}(r^{2}\theta')=0 \Rightarrow r^{2}\theta'=k

Se a derivada é zero, então a integral é uma constante. Se você lembrar que r2θ é o dobro da área de um setor circular, então o que essa fórmula diz é que a taxa de variação da área de um setor é constante, ou seja, para um dado intervalo de tempo, ele percorre sempre a mesma área. Ora, essa é a segunda lei de Kepler! Pelo que concluímos, ela funciona pra qualquer força central, não só pra gravidade.

Vamos lidar com a componente radial agora. As massas são todas constantes, então vale que F=ma. Além disso, vamos introduzir uma variável u pra facilitar as contas:

\frac{F}{m}=r''-r\theta'^{2}
r=\frac{1}{u}\Rightarrow u=\frac{1}{r}

Nós podemos isolar o tempo e deixar o raio em função do ângulo, usando uma mudança de váriaveis com a regra da cadeia.

r^{2} \theta'=k \Rightarrow \frac{d\theta}{dt}=\frac{k}{r^{2}}=ku^{2}
r'=\frac{dr}{dt}=\frac{dr}{d\theta}\frac{d\theta}{dt}=\frac{d}{d\theta}(\frac{1}{u})ku^{2} =-\frac{1}{u^{2}}\frac{du}{d\theta}ku^{2}=-k\frac{du}{d\theta}
r''=\frac{dr'}{dt}=\frac{dr'}{d\theta}\frac{d\theta}{dt}=\frac{d}{d\theta}(-k\frac{du}{d\theta})ku^{2}=-k^{2}u^{2}\frac{d^{2}u}{d\theta^{2}}

Agora é só substituir na equação original:

\frac{F}{m}=r''-r(\frac{d\theta}{dt})^{2}=-k^{2}u^{2}\frac{d^{2}u}{d\theta^{2}}-\frac{1}{u}(ku^{2})^{2}=-k^{2}u^{2}(\frac{d^{2}u}{d\theta^{2}}+u)
-\frac{F}{mk^{2}u^{2}}=\frac{d^{2}u}{d\theta^{2}}+u

Pronto! Esta é a equação geral das órbitas com força central. Para conferir se está certo, vamos colocar uma força inversamente quadrática. Note que as forças precisam ser negativas, pois, na nossa orientação, forças atrativas são negativas. Aliás, como eu não estou interessado em unidades, vou escolher constantes que cancelem.

F=-\frac{mk^{2}}{r^{2}}=-mk^{2}u^{2}
1=\frac{d^{2}u}{d\theta^{2}}+u

Para resolver a equação diferencial, somamos a solução particular com as homogêneas. Uma particular é fácil, u=1. A homogênea todo mundo sabe de cabeça, é cos(θ) (vezes uma constante que depende das condições de contorno). Afinal, é a mesma solução do sistema massa-mola, do oscilador LC, e assim por diante.

u=1+e.cos(\theta) \Rightarrow r=\frac{1}{1+e.cos(\theta)

Ahá! Esta é equação da seção cônica em coordenadas polares. Dependendo do valor de e, a órbita pode ser circular (e=0, como Vênus, aproximadamente), elíptica (e<1, como a Terra), parabólica ou hiperbólica (e=1 ou e>1, como os cometas).

Vamos tentar outro tipo de força, por exemplo, uma inversamente cúbica. Nesse caso:

F=-\frac{mk^{2}}{r^{3}}=-mk^{2}u^{3}
u=\frac{d^{2}u}{d\theta^{2}}+u \Rightarrow \frac{d^{2}u}{d\theta^{2}} =0 \Rightarrow u=\theta \Rightarrow r=\frac{1}{\theta}

Ou seja, a órbita agora é uma espiral.

Agora que temos a equação geral, podemos colocar a força que quisermos, e analisar a órbita resultante. O problema é que muitas fórmulas geram equações que não tem solução analítica, então eu fiz um scriptzinho em python pra resolver numericamente mesmo. Abaixo o script e os resultados para várias funções:

Script em python para resolver órbitas em universos paralelos


Para uma força inversamente quadrática, a órbita é circular, como esperado pela Lei da Gravidade.


Já uma força inversamente cúbica gera uma espiral. Essa força é fraquinha demais pra manter uma órbita, e o planeta vai aos poucos se afastando.


Uma força inversamente linear demora para estabilizar, mas acaba fazendo uma órbita circular também.


E uma força constante, independente da distância? Ela também termina numa órbita circular, o que pra mim faz sentido. O planeta se move até o ponto onde a força constante é igual à centrípeta.


Agora vamos sacanear e colocar uma força senoidal só pra ver o que acontece. Ele não diverge, mas faz uma órbita muito doida. Provavelmente é um atrator estranho.

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segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Lena e iLena

Existem algumas imagens que são icônicas. São tão conhecidas, que só com uma descrição simples você já sabe de qual imagem eu estou falando. O rosto do Che Guevara, a Marilyn com a saia levantada, o chinesinho parando os tanques: todos conhecem essas imagens.

Agora, se você for um estudioso do processamento digital de imagens, as suas imagens icônicas são outras. Para poder comparar algoritmos, nós usamos uma série de imagens padronizadas, como o mandrill e as pimentas. Mas, dessas imagens, nenhuma é tão conhecida como a Lena:


Lena

Há quem diga que a imagem da Lena ficou tão famosa entre os cientistas por ser uma imagem complexa o suficiente pra testar qualquer algoritmo: ela tem freqüências baixas e altas, texturas complexas, faixa dinâmica larga. A minha teoria é mais prosaica: se você vai ter que ficar olhando pra mesma imagem por meses, uma mulher bonita é melhor que um babuíno de nariz vermelho :)

Mas a imagem da Lena tem um segredo que nem todos conhecem. Quando eu descobri a origem da imagem, fiquei doido pra conseguir uma cópia original da fonte de onde essa imagem saiu. E depois de anos procurando, finalmente consegui:


Clique na imagem pra ver a versão completa, NSFW

Sim, a imagem usada por cientistas do mundo todo, na verdade, é um centerfold da Playboy!

Essa edição é a Playboy americana de novembro de 1972. Eu corajosamente a comprei no ebay, mesmo com os avisos que diziam "warning: pages may be sticky". Foi um ótimo negócio, o vendedor me vendeu uma Playboy usada, e eu comprei um pedaço da história da computação :)

A origem da imagem é curiosa. Conta-se que o pesquisador tinha um paper pra entregar no dia seguinte, e precisava de uma imagem com urgência. Ele acabou digitalizando a primeira revista que achou em sua mesa, a edição da Playboy com a Lena, que, curiosamente, também foi a edição mais vendida da história da revista. Ele não contou pra ninguém a origem da imagem, e por anos muitos usaram a imagem sem conhecer a história dela.

Isso acabou gerando um problema quando a Playboy descobriu que uma das suas imagens estava sendo copiada indiscriminadamente por aí. Inicialmente, ela tentou impedir o uso da imagem, mas depois acabou descobrindo que era boa propaganda, e hoje em dia a diretoria da revista faz vista grossa para o assunto.

Por outro lado, como a imagem ainda tem copyright, nunca se sabe se um dia a diretoria não vai mudar de idéia e vetar novamente o uso. Se você precisa de uma nova imagem de teste, agora tem uma nova solução! A minha esposa (ilustradora, modelo e atriz), fez um remake da imagem da Lena, e disponibilizou com a licença Creative Commons Attribution-Share Alike. E se você usar a imagem em algum paper, eu ainda posso fazer um peer review na faixa pra você.


iLena

Obviamente, a versão original dessa imagem só eu tenho :)

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quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Top 5 emuladores

Dia desses, um amigo me perguntou se eu conseguiria fazer uma lista com os meus cinco emuladores prediletos. Esse é o tipo de pergunta que, normalmente, é difícil de responder. Eu já escrevi um monte de emuladores, já conversei com inúmeros autores, e era de se esperar que fosse muito díficil criar uma lista assim. Afinal, sempre que você faz um top five, precisa deixar muita coisa bacana de fora, especialmente se você conhece bastante o assunto.



Porém, surpreendentemente, fazer a lista foi fácil! Tem cinco emuladores que se destacam, pela enorme influência que tiveram em tudo que se seguiu. Em ordem cronológica reversa:

VMware (2001)

No fim da década de 90, quando se falava em emuladores, imediamente as pessoas pensavam em videogames. O VMware trouxe de volta os emuladores ao mundo corporativo. As aplicações são inúmeras: desenvolvedores, por exemplo, podem programar no Linux, e testar a aplicação num Windows emulado. Em datacenters o impacto é ainda maior. Usando a versão ESX, os administradores de datacenter podem usar uma mesma imagem em todos os servidores, mesmo que eles sejam heterogêneos; e dá até pra trocar uma imagem de um servidor para outro enquanto ela está rodando, com downtime mínimo.

O truque do VMware pra conseguir desempenho é que a virtualização dele tenta evitar a emulação tanto quanto possível. Em algumas situações, como código rodando em user space, o VMware roda o código diretamente na CPU. Ele só usa emulação nos trechos críticos, como código rodando em kernel space, ou código acessando periféricos que foram virtualizados.

bleem (1999)

Se o VMware mudou a percepção que o povo da época tinha dos emuladores, o bleem foi igualmente importante, ao mudar a percepção do underground para o mainstream. Até então, emuladores de videogame eram um produto de nicho, conhecidos só por alguns poucos viciados em internet. O bleem, que na época era o melhor emulador de Playstation, levou os emuladores para as lojas. Hoje nós temos um mercado construído em cima da emulação de jogos, como prova o sucesso do Virtual Console no Wii, e quem começou esse mercado foi o bleem.

Mas pra mim o bleem tem um significado mais especial. Naquela época em que fazíamos emuladores, ninguém tinha muita certeza se nós estávamos dentro da legalidade ou não. Quando o bleem começou a bombar, a Sony processou os criadores do bleem, e depois de uma ferrenha briga judicial, o bleem saiu vitorioso. Eu passei a dormir mais tranquilo depois disso :)

O emulador de 8080 do Paul Allen (1975)

O Bill Gates sempre foi bom de blefe. Quando ele descobriu que a MITS estava fazendo o Altair 8800, ele entrou em contato com os fabricantes para oferecer um interpretador BASIC. Os fabricantes se empolgaram e marcaram uma reunião pra fazer uma demonstração. O problema é que não havia demo, foi tudo um blefe do Bill! Com a reunião marcada, ele e o sócio Paul Allen tiveram que correr pra preparar um demo a tempo. O blefe era tão vazio, que eles nem tinham um Altair pra poder programar.

Como criar um interpretador para o Altair, sem ter um Altair? A solução que eles encontraram foi a emulação. Enquanto o Bill Gates escrevia o interpretador, o Paul Allen escreveu um emulador de 8080, a CPU usada no Altair. Como eles também não tinham computador pra rodar o emulador, testavam o software deles no PDP-10 da Harvard, a faculdade onde estudavam. No final, eles acabaram a tempo, e criaram a Microsoft para vender aquele interpretador. Poucos emuladores podem ser tão influentes assim :)

IBM System/360 (1964)

Tem muitas coisas que são naturais para nós, mas que eram o ápice da inovação no passado. Upgrades, por exemplo. Hoje em dia, se o seu programa está rodando muito lento, você pode comprar um computador mais novo e o programa rodará mais rápido. Mas antigamente isso não era verdade: se você comprasse um computador novo, iria precisar de um software novo também. Não existia portabilidade.

A IBM mudou isso com o IBM System/360, uma família de computadores projetada com a compatibilidade em mente. Você poderia comprar um System/360 pequeno, e se precisasse de mais processamento, era só comprar um modelo maior, rodando o mesmo software. E se não bastasse isso, a IBM ainda garantia compatibilidade com modelos anteriores ao System/360! O segredo, é claro, era emulação: a IBM criou emuladores de seus sistemas mais antigos e populares. Não por acaso, o System/360 foi o computador mais vendido de sua época.

A máquina universal de Turing (1936)

No começo do século XX, os matemáticos estavam procurando a solução do Entscheidungsproblem: existe um processo capaz de decidir se uma expressão matemática é verdadeira ou não? Na época ainda não existia o conceito de algoritmo, o Turing teve que partir do zero. Ele construiu um modelo computacional, a máquina de Turing, e a usou pra chegar na decepcionante conclusão de que o tal algoritmo de decisão não existe. Por outro lado, ele concluiu que, para todos os algoritmos que existem, também existe uma máquina de Turing capaz de executá-lo (essa é a tese de Church-Turing).

Mas o Turing foi além. Baseado no trabalho do Gödel, ele concebeu uma máquina de Turing mais poderosa, que era capaz de rodar qualquer algoritmo que outra máquina de Turing conseguisse. O truque, como vocês devem ter deduzido, é usar emulação. As máquinas universais de Turing não apenas são o modelo matemático que permite a existência de emuladores, como também de toda a computação.

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sábado, 4 de julho de 2009

A cidade da ciência

Leitores atentos devem ter notado que o intervalo entre os dois últimos posts foi maior que o normal. Mas foi por um bom motivo: eu estava casando! Foi uma correria; entre cartórios, mudança e lua de mel, nem eu tive tempo de escrever, e nem minha esposa de desenhar as ilustrações. Mas valeu a pena, é claro :)


Para começar a lua de mel, nenhuma cidade poderia ser tão apropriada como Paris. Para o casal, Paris é a cidade dos amantes. Para a minha esposa, Paris é a cidade dos artistas. Mas para mim, Paris é especial por ser a cidade da ciência.

De fato, desde a revolução francesa, os parisienses se orgulham em manter os ideais do Iluminismo (sendo essa uma das possíveis origens de um famoso epíteto de Paris: a cidade-luz). O laicismo é presente logo no primeiro item da constituição francesa, e a cultura científica permeia a cidade até nos nomes das ruas (você pode morar na esquina da Rua Kepler com a Rua Galileu, pertinho da Rua Newton e da Rua Euler). E isso sem contar que a cidade possui um enorme museu de ciências, o Citè des Sciences et de l'Industrie.

Mas o principal motivo mesmo para eu considerar Paris como a cidade da ciência data de 1889, ano em que foi terminado o maior monumento à ciência já construído: a Torre Eiffel!


A Torre Eiffel foi construída para a Exposição Universal que comemorava o centenário da Revolução Francesa, e ela era uma celebração ao triunfo da tecnologia: em sua época, era o mais alto monumento criado pelo homem; e permaneceu assim por 40 anos, até ser desbancada pelo Chrysler Building.

A torre também era o estado da arte da engenharia do século XIX. O seu criador, Gustave Eiffel, usou em seu projeto métodos geométricos para minimizar o efeito do vento, e só recentemente conseguiram resolver de forma analítica a equação que define a curva de seu perfil, uma exponencial. A solução geométrica de Eiffel era tão precisa, que mesmo sob ventos fortes, o topo da torre desloca apenas 13cm (como comparação, é menos do que o topo desloca por dilatação: se o sol bate de um lado da torre enquanto o outro está na sombra, a torre desloca 18cm).

Mas das homenagens à ciência na torre, a minha preferida é uma mais sutil, que muitos daqueles que a visitam passam sem perceber. Logo abaixo do primeiro andar, estão gravados em relevo os nomes de 72 cientistas franceses:

Poinsot, Foucault, Delaunay

Na primeira vez que vi, reconheci de imediato vários nomes, como Lavoisier, Ampère, Laplace. Mas muitos outros eu não identifiquei, e resolvi matar a curiosidade online. Qual não foi a minha surpresa ao descobrir que alguns eram tão obscuros que nem a wikipedia os conhecia!

Sendo assim, resolvi arregaçar as mangas e procurar quem eram os 72 cientistas homenageados pelo Eiffel. Abaixo, a lista completa de cientistas e alguns de seus feitos, separados pelo lado da torre em que aparecem:

Lado do Trocadero

Seguin: Inventor da ponte pênsil moderna.
Lalande: Astrônomo que nomeou a constelação do Gato.
Tresca: Criou a primeira barra de platina que serviu de referência de comprimento do sistema métrico.
Poncelet: Co-autor do teorema de Poncelet-Steiner da geometria.
Bresse: Pioneiro dos motores hidráulicos.
Lagrange: Responsável pelo Lagrangiano da física, pelos Pontos Lagragianos da astronomia e pelos polinômios de Lagrange da álgebra.
Bélanger: Criador da equação de Bélanger para o ressalto hidráulico.
Cuvier: Paleontólogo, foi o primeiro a provar que elefantes indianos, africanos e mamutes são espécies diferentes.
Laplace: Criador das transformadas de Laplace usadas no cálculo de transientes elétricos.
Dulong: Co-autor da lei de Dulong-Petit da termodinâmica.
Chasles: Autor dos teoremas de Chasles em geometria e física.
Lavoisier: Autor da lei da conservação da massa.
Ampère: Autor da lei de Ampère do eletromagnetismo.
Chevreul: Inventor da margarina, afinal, culinária é química aplicada.
Flachat: Engenheiro responsável pelo terminal de Gare Saint-Lazare, em Paris.
Navier: Co-autor das equações de Navier-Stokes da mecânica dos fluidos.
Legendre: Criador do símbolo de Legendre usado na teoria dos números.
Chaptal: Criador da chaptalização, técnica para aumentar o teor alcóolico do vinho.

Lado da ponte de Grenelle

Jamin: Criador do interferômetro de Jamin usado na análise de gases.
Gay-Lussac: Autor das leis de Gay-Lussac da termodinâmica.
Fizeau: Criou o primeiro aparato capaz de medir a velocidade da luz.
Schneider: Construiu a primeira locomotiva a vapor da França.
Le Chatelier: Autor do princípio de Le Chatelier nas reações químicas em equilíbrio.
Berthier: Descobridor da bauxita.
Barral: Pioneiro na extração da nicotina a partir da folha de tabaco.
De Dion: Criador do primeiro hangar para dirigíveis.
Goüin: Introduziu as pontes de chapas rebitadas na França.
Jousselin: Projetista do canal do rio Loire.
Broca: Anatomista que estudou a região de Broca no cérebro humano.
Becquerel: Ganhador do Nobel como descobridor da radiatividade.
Coriolis: Descobridor do efeito Coriolis em rotações.
Cail: Engenheiro responsável pelo impressionante viaduto de Fades.
Triger: Criador do processo de Triger para cavar fundações de pontes.
Giffard: Inventor do primeiro dirigível a vapor.
Perrier: Um dos primeiros a fotografar o trânsito de Vênus.
Sturm: Conhecido pelas funções de Sturm da álgebra.

Lado do Campo de Marte

Cauchy: Co-autor da desigualdade de Cauchy-Schwarz.
Belgrand: Projetista do sistema de esgotos de Paris.
Regnault: Estudioso dos gases, em sua homenagem a constante dos gases ideais recebeu a letra R.
Fresnel: Autor da lei de Fresnel para refração de ondas.
De Prony: Autor da equação de Prony para perda de carga hidráulica.
Vicat: Inventor do cimento moderno.
Ebelmen: Descobridor do ciclo geoquímico do carbono.
Coulomb: Autor da lei de Coulomb para cargas elétricas.
Poinsot: Inventor do elipsóide de Poinsot na mecânica de corpo rígido.
Foucault: Descobridor das correntes de Foucault do eletromagnetismo.
Delaunay: Estudou o problema dos três corpos aplicado ao sistema Sol-Terra-Lua.
Morin: Modelou a força de atrito estático.
Haüy: Autor da lei de Haüy da cristalografia.
Combes: Estudioso do problema da ventilação em minas.
Thénard: Descobridor da água oxigenada.
Arago: Realizou o experimento de Arago, que comprova a natureza ondulatória da luz.
Poisson: Autor da distribuição de Poisson na estatística.
Monge: Autor do teorema de Monge da geometria.

Lado da Sacre Coeur

Petiet: Criador de locomotivas.
Daguerre: Inventor do daguerreótipo.
Wurtz: Criador da reação de Wurtz da química.
Le Verrier: Um dos descobridores do planeta Netuno.
Perdonnet: Construiu as primeiras ferrovias da França.
Delambre: Mediu o comprimento de um meridiano, definindo assim o metro.
Malus: Autor da lei de Malus na polarização da luz.
Breguet: Inventor do telégrafo de Breguet.
Polonceau: Criador da estrutura conhecida como teto de Polonceau.
Dumas: Descobriu que o rim remove uréia do sangue.
Clapeyron: Autor da equação de Clapeyron para transição de fase da matéria.
Borda: Criador do sistema de votação de Borda.
Fourier: Inventor das séries de Fourier.
Bichat: Pai da histologia, o primeiro a reconhecer que órgãos são feitos de tecidos.
Sauvage: Criou os primeiros mapas geológicos da França.
Pelouze: Primeiro a calcular a massa atômica do Arsênio.
Carnot: Autor do teorema de Carnot da geometria.
Lamé: Criador da análise por harmônicas elípticas.

A lista é bem heterogênea. Ela parte de alicerces da ciência como Lagrange e Laplace, e passa por heróis locais que devem ser uma espécie de Santos-Dumont à francesa: famosos em seu país, mas nem tanto longe dele. Por fim, há os realmente obscuros. Desse último grupo, eu notei que todos deram aula na École Polytechnique, o que indica que o Eiffel deve ter colocado esses nomes para puxar o saco fazer uma homenagem a seus professores.

Visitar a torre Eiffel é uma experiência incrível, mas não foi a melhor parte da lua de mel. Uma descrição da melhor parte da lua de mel fugiria do escopo desse blog :)

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