Python one-liners são Turing-complete
Quem programa em C há décadas normalmente não se dá conta de quão ilegíveis são as expressões mais comuns da linguagem. Quando eu era um garoto recém-saído do BASIC, eu lembro de ter me assustado com coisas básicas como for(i=0; i<10; i++). Mas isso é idiossincrasia do C, outras linguagens não sofrem disso, como o Python.
Python foi planejada para ser legível. Os programadores mais experientes citam o Zen of Python, que dita que "belo é melhor que feio", e "legibilidade conta". De fato, é até difícil escrever código ilegível em Python. Mas é claro que difícil não é impossível, e se o dr. Ian Malcolm fosse um programador, ele certamente diria que "obfuscation finds a way."
Aconteceu comigo semana passada: eu olhava alguns exercícios sobre listas para iniciantes, e notei que, embora eles fossem de fato muito simples, ficariam bem mais divertidos se eu tentasse resolvê-los usando apenas uma linha em cada. Abusando de programação funcional, eu consegui fazer os dez primeiros assim:
Soluções dos exercícios em uma linha de Python cada.
Depois de brincar algum tempo com one-liners, a pergunta que naturalmente se apresenta é: será que é possível fazer qualquer programa em uma linha de Python? A dificuldade vem do fato de que o Python diferencia statements de expressions, e você só pode ter um statement por linha. Em Python, statements incluem print, if, while, for e atribuições, ou seja, um one-liner só pode usar um único desses.
Então, colocando a pergunta de outra maneira: é possível demonstrar que um programa em Python com um único statement é Turing-complete? Existem dois caminhos pra demonstrar isso, o primeiro é construir um emulador para uma máquina de Turing universal em uma linha, o segundo é mostrar que é possível converter para uma linha de Python todos os programas possíveis de um sistema que seja Turing-complete, como o cálculo lambda, ou os tag-systems.
Eu resolvi abordar o problema com a filosofia Ricbit: se existem várias maneiras equivalentes de fazer alguma coisa, escolha a mais bizarra! Assim sendo, vou demonstrar que Python one-liners são Turing-complete através de redução ao Brainfuck (cuja universalidade já foi demonstrada várias vezes).
Vamos lá então: o estado de um programa em Brainfuck pode descrito em qualquer momento por uma quádrupla (mem, p, stdin, stdout), que são respectivamente a memória, o ponteiro, a entrada e saída. Vou implementar cada operação do Brainfuck como funções que recebem quádruplas e retornam quádruplas, descrevendo assim a transição de estado.
A operação mais simples é o ponto, que só adiciona o elemento apontado na saída:
dot = lambda mem, p, stdin, stdout: (mem, p, stdin, stdout+[mem[p]])
Para implementar a vírgula, eu preciso primeiro de alguma maneira de modificar um único elemento de uma lista. Se eu pudesse usar atribuições, bastaria algo do tipo mem[p]=value, mas como atribuições em Python são statements, preciso de uma função auxiliar. Além disso, eu preciso fazer o pop() do valor frontal da lista que guarda o stdin, o que me leva à outra auxiliar:
change = lambda mem, pos, value: [value if i==pos else a for i, a in enumerate(mem)]
get = lambda s: (s[0], s[1:]) if len(s) else (0,[])
comma = lambda mem, p, stdin, stdout: (lambda now, next: (change(mem, p, now), p, next, stdout))(*get(stdin))
Tendo a função change em mãos, fazer os comandos de mais e menos é simples:
plus = lambda mem, p, stdin, stdout: (change(mem, p, mem[p]+1), p, stdin, stdout)
minus = lambda mem, p, stdin, stdout: (change(mem, p, mem[p]-1), p, stdin, stdout)
Os comandos de esquerda e direita precisam tomar o cuidado de aumentar os limites da memória se necessário, a universalidade do Brainfuck requer uma fita infinita para os dois lados:
left = lambda mem, p, stdin, stdout: ([0]+mem if not p else mem, 0 if not p else p-1, stdin, stdout)
right = lambda mem, p, stdin, stdout: (mem+[0] if p==len(mem)-1 else mem, p+1, stdin, stdout)
Agora chegamos na parte complicada, que é o operador de loop. Como for e while são statements, e lambdas recursivos precisam de uma atribuição (fat = lambda x: 1 if x<=1 else x*fat(x-1)), então a única saída é apelar pra lazy evaluation, que no Python é implementada no módulo itertools. (Incluir o módulo itertools poderia tornar o programa um two-liner, mas felizmente é possível importar um módulo usando uma expression ao invés de um statement: a função __import__).
A solução para o operador de loop é criar uma lista infinita contendo [x, f(x), f(f(x)), f(f(f(x))), ...], onde cada f é uma aplicação do conteúdo do loop. Depois, para executar o loop, basta iterar nesta lista infinita, procurando o primeiro elemento onde o elemento apontado pelo ponteiro seja nulo. Precisamos então de uma função que calcule f^n e uma que gere a lista infinita:
composite = lambda f, n: lambda x: reduce(lambda a, b: b(*a), [f]*n, x)
infinite = lambda f, x: itertools.imap(lambda n: composite(f, n)(x), itertools.count(0))
Depois, basta criar um predicado que avalie quando o loop deve parar, e pegar o primeiro elemento da lista onde o predicado é verdadeiro:
predicate = lambda mem, p, stdin, stdout: mem[p] != 0
getfirst = lambda it: [i for i in itertools.islice(it, 1)][0]
loop = lambda f: lambda *x: getfirst(itertools.dropwhile(lambda x: predicate(*x), infinite(f,x)))
Tendo todos os comandos, só precisamos de uma função extra para encadeá-los, e depois, só para o programa não ficar grande demais, um shortcut que executa strings diretamente em Brainfuck:
chain = lambda f: lambda *x: reduce(lambda y, g: g(*y), f, x)
bf = {'+':plus, '-':minus, '.':dot, ',':comma, '<':left, '>':right}
run = lambda f: chain([bf[i] for i in f])
Feito! Agora é só fazer um script para parsear o Brainfuck original e gerar o one-liner. A título de ilustração, esse é o Hello World gerado pelo script:
print ''.join(chr(i) for i in ( (lambda itertools: (lambda change, get, chain, composite: (lambda comma, dot, plus, minus, left, right, infinite, predicate, getfirst: (lambda bf, loop: (lambda run: (chain ([run ("++++++++++"), loop (run ("<+++++++<" "++++++++++<" "+++<+>>>>-")), run ("<++.<" "+.+++++++..+++." "<++.>>" "+++++++++++++++" ".<.+++." "------.--------" ".<+.<.")])) ([0],0,[],[]) )( (lambda f: chain([bf[i] for i in f])) ) )( ({'+':plus, '-':minus, '.':dot, ',':comma, '<':left, '>':right}), (lambda f: lambda *x: getfirst(itertools.dropwhile(lambda x: predicate(*x), infinite(f,x)))) ) )( (lambda mem,p,stdin,stdout: (lambda now,next: (change(mem,p,now),p,next,stdout))(*get(stdin))), (lambda mem,p,stdin,stdout: (mem,p,stdin,stdout+[mem[p]])), (lambda mem,p,stdin,stdout: (change(mem,p,mem[p]+1),p,stdin,stdout)), (lambda mem,p,stdin,stdout: (change(mem,p,mem[p]-1),p,stdin,stdout)), (lambda mem,p,stdin,stdout: ([0]+mem if not p else mem, 0 if not p else p-1, stdin, stdout)), (lambda mem,p,stdin,stdout: (mem+[0] if p==len(mem)-1 else mem, p+1, stdin, stdout)), (lambda f,x: itertools.imap(lambda n: composite(f,n)(x), itertools.count(0))), (lambda mem,p,stdin,stdout: mem[p] != 0), (lambda it: [i for i in itertools.islice(it, 1)][0]) ) )( (lambda mem,pos,value: [value if i==pos else a for i,a in enumerate(mem)]), (lambda s: (s[0],s[1:]) if len(s) else (0,[])), (lambda f: lambda *x: reduce(lambda y,g: g(*y), f, x)), (lambda f,n: lambda x: reduce(lambda a,b:b(*a),[f]*n,x)) ) )(__import__("itertools")) )[3])
QED, em uma única linha, como prometido! (Eu não prometi que seria uma linha pequena :)
O script que converte de Brainfuck para Python one-liner está abaixo, para quem quiser brincar:
Conversor para Python one-liner.
Como nota final, vale lembrar que só porque você pode escrever qualquer coisa em uma linha, não significa que você deve fazer isso. Legibilidade conta :)
Python foi planejada para ser legível. Os programadores mais experientes citam o Zen of Python, que dita que "belo é melhor que feio", e "legibilidade conta". De fato, é até difícil escrever código ilegível em Python. Mas é claro que difícil não é impossível, e se o dr. Ian Malcolm fosse um programador, ele certamente diria que "obfuscation finds a way."
Aconteceu comigo semana passada: eu olhava alguns exercícios sobre listas para iniciantes, e notei que, embora eles fossem de fato muito simples, ficariam bem mais divertidos se eu tentasse resolvê-los usando apenas uma linha em cada. Abusando de programação funcional, eu consegui fazer os dez primeiros assim:
Soluções dos exercícios em uma linha de Python cada.
Depois de brincar algum tempo com one-liners, a pergunta que naturalmente se apresenta é: será que é possível fazer qualquer programa em uma linha de Python? A dificuldade vem do fato de que o Python diferencia statements de expressions, e você só pode ter um statement por linha. Em Python, statements incluem print, if, while, for e atribuições, ou seja, um one-liner só pode usar um único desses.
Então, colocando a pergunta de outra maneira: é possível demonstrar que um programa em Python com um único statement é Turing-complete? Existem dois caminhos pra demonstrar isso, o primeiro é construir um emulador para uma máquina de Turing universal em uma linha, o segundo é mostrar que é possível converter para uma linha de Python todos os programas possíveis de um sistema que seja Turing-complete, como o cálculo lambda, ou os tag-systems.
Eu resolvi abordar o problema com a filosofia Ricbit: se existem várias maneiras equivalentes de fazer alguma coisa, escolha a mais bizarra! Assim sendo, vou demonstrar que Python one-liners são Turing-complete através de redução ao Brainfuck (cuja universalidade já foi demonstrada várias vezes).
Vamos lá então: o estado de um programa em Brainfuck pode descrito em qualquer momento por uma quádrupla (mem, p, stdin, stdout), que são respectivamente a memória, o ponteiro, a entrada e saída. Vou implementar cada operação do Brainfuck como funções que recebem quádruplas e retornam quádruplas, descrevendo assim a transição de estado.
A operação mais simples é o ponto, que só adiciona o elemento apontado na saída:
dot = lambda mem, p, stdin, stdout: (mem, p, stdin, stdout+[mem[p]])
Para implementar a vírgula, eu preciso primeiro de alguma maneira de modificar um único elemento de uma lista. Se eu pudesse usar atribuições, bastaria algo do tipo mem[p]=value, mas como atribuições em Python são statements, preciso de uma função auxiliar. Além disso, eu preciso fazer o pop() do valor frontal da lista que guarda o stdin, o que me leva à outra auxiliar:
change = lambda mem, pos, value: [value if i==pos else a for i, a in enumerate(mem)]
get = lambda s: (s[0], s[1:]) if len(s) else (0,[])
comma = lambda mem, p, stdin, stdout: (lambda now, next: (change(mem, p, now), p, next, stdout))(*get(stdin))
Tendo a função change em mãos, fazer os comandos de mais e menos é simples:
plus = lambda mem, p, stdin, stdout: (change(mem, p, mem[p]+1), p, stdin, stdout)
minus = lambda mem, p, stdin, stdout: (change(mem, p, mem[p]-1), p, stdin, stdout)
Os comandos de esquerda e direita precisam tomar o cuidado de aumentar os limites da memória se necessário, a universalidade do Brainfuck requer uma fita infinita para os dois lados:
left = lambda mem, p, stdin, stdout: ([0]+mem if not p else mem, 0 if not p else p-1, stdin, stdout)
right = lambda mem, p, stdin, stdout: (mem+[0] if p==len(mem)-1 else mem, p+1, stdin, stdout)
Agora chegamos na parte complicada, que é o operador de loop. Como for e while são statements, e lambdas recursivos precisam de uma atribuição (fat = lambda x: 1 if x<=1 else x*fat(x-1)), então a única saída é apelar pra lazy evaluation, que no Python é implementada no módulo itertools. (Incluir o módulo itertools poderia tornar o programa um two-liner, mas felizmente é possível importar um módulo usando uma expression ao invés de um statement: a função __import__).
A solução para o operador de loop é criar uma lista infinita contendo [x, f(x), f(f(x)), f(f(f(x))), ...], onde cada f é uma aplicação do conteúdo do loop. Depois, para executar o loop, basta iterar nesta lista infinita, procurando o primeiro elemento onde o elemento apontado pelo ponteiro seja nulo. Precisamos então de uma função que calcule f^n e uma que gere a lista infinita:
composite = lambda f, n: lambda x: reduce(lambda a, b: b(*a), [f]*n, x)
infinite = lambda f, x: itertools.imap(lambda n: composite(f, n)(x), itertools.count(0))
Depois, basta criar um predicado que avalie quando o loop deve parar, e pegar o primeiro elemento da lista onde o predicado é verdadeiro:
predicate = lambda mem, p, stdin, stdout: mem[p] != 0
getfirst = lambda it: [i for i in itertools.islice(it, 1)][0]
loop = lambda f: lambda *x: getfirst(itertools.dropwhile(lambda x: predicate(*x), infinite(f,x)))
Tendo todos os comandos, só precisamos de uma função extra para encadeá-los, e depois, só para o programa não ficar grande demais, um shortcut que executa strings diretamente em Brainfuck:
chain = lambda f: lambda *x: reduce(lambda y, g: g(*y), f, x)
bf = {'+':plus, '-':minus, '.':dot, ',':comma, '<':left, '>':right}
run = lambda f: chain([bf[i] for i in f])
Feito! Agora é só fazer um script para parsear o Brainfuck original e gerar o one-liner. A título de ilustração, esse é o Hello World gerado pelo script:
print ''.join(chr(i) for i in ( (lambda itertools: (lambda change, get, chain, composite: (lambda comma, dot, plus, minus, left, right, infinite, predicate, getfirst: (lambda bf, loop: (lambda run: (chain ([run ("++++++++++"), loop (run ("<+++++++<" "++++++++++<" "+++<+>>>>-")), run ("<++.<" "+.+++++++..+++." "<++.>>" "+++++++++++++++" ".<.+++." "------.--------" ".<+.<.")])) ([0],0,[],[]) )( (lambda f: chain([bf[i] for i in f])) ) )( ({'+':plus, '-':minus, '.':dot, ',':comma, '<':left, '>':right}), (lambda f: lambda *x: getfirst(itertools.dropwhile(lambda x: predicate(*x), infinite(f,x)))) ) )( (lambda mem,p,stdin,stdout: (lambda now,next: (change(mem,p,now),p,next,stdout))(*get(stdin))), (lambda mem,p,stdin,stdout: (mem,p,stdin,stdout+[mem[p]])), (lambda mem,p,stdin,stdout: (change(mem,p,mem[p]+1),p,stdin,stdout)), (lambda mem,p,stdin,stdout: (change(mem,p,mem[p]-1),p,stdin,stdout)), (lambda mem,p,stdin,stdout: ([0]+mem if not p else mem, 0 if not p else p-1, stdin, stdout)), (lambda mem,p,stdin,stdout: (mem+[0] if p==len(mem)-1 else mem, p+1, stdin, stdout)), (lambda f,x: itertools.imap(lambda n: composite(f,n)(x), itertools.count(0))), (lambda mem,p,stdin,stdout: mem[p] != 0), (lambda it: [i for i in itertools.islice(it, 1)][0]) ) )( (lambda mem,pos,value: [value if i==pos else a for i,a in enumerate(mem)]), (lambda s: (s[0],s[1:]) if len(s) else (0,[])), (lambda f: lambda *x: reduce(lambda y,g: g(*y), f, x)), (lambda f,n: lambda x: reduce(lambda a,b:b(*a),[f]*n,x)) ) )(__import__("itertools")) )[3])
QED, em uma única linha, como prometido! (Eu não prometi que seria uma linha pequena :)
O script que converte de Brainfuck para Python one-liner está abaixo, para quem quiser brincar:
Conversor para Python one-liner.
Como nota final, vale lembrar que só porque você pode escrever qualquer coisa em uma linha, não significa que você deve fazer isso. Legibilidade conta :)
Marcadores: code, infinito, linguagens bizarras, programação funcional, python